Médico cancerologista, já calejado com longos 29 anos de
atuação profissional, com toda vivência e experiência que o exercício da
medicina nos traz, posso afirmar que cresci e me modifiquei com os
dramas vivenciados pelos meus pacientes. Dizem que a dor é quem ensina a
gemer. Não conhecemos nossa verdadeira dimensão, até que, pegos pela
adversidade, descobrimos que somos capazes de ir muito mais além.
Descobrimos uma força mágica que nos ergue, nos anima, e não raro, nos
descobrimos confortando aqueles que vieram para nos confortar.
Um dia, um anjo passou por mim...
No início da minha vida profissional, senti-me atraído em
tratar crianças, me entusiasmei com a oncologia infantil. Tinha, e
tenho ainda hoje, um carinho muito grande por crianças. Elas nos
enternecem e nos surpreendem como suas maneiras simples e diretas de ver
o mundo, sem meias verdades.
Nós médicos somos treinados para nos sentirmos "deuses".
Só que não o somos! Não acho o sentimento de onipotência de todo ruim,
se bem dosado. É este sentimento que nos impulsiona, que nos ajuda a
vencer desafios, a se rebelar contra a morte e a tentar ir sempre mais
além. Se mal dosado, porém, este sentimento será de arrogância e
prepotência, o que não é bom. Quando perdemos um paciente, voltamos à
planície, experimentamos o fracasso e os limites que a ciência nos impõe
e entendemos que não somos deuses. Somos forçados a reconhecer nossos
limites!
Recordo-me com emoção do Hospital do Câncer de
Pernambuco, onde dei meus primeiros passos como profissional. Nesse
hospital, comecei a freqüentar a enfermaria infantil, e a me apaixonar
pela oncopediatria. Mas também comecei a vivenciar os dramas dos meus
pacientes, particularmente os das crianças, que via como vítimas
inocentes desta terrível doença que é o câncer.
Com o nascimento da minha primeira filha, comecei a me
acovardar ao ver o sofrimento destas crianças. Até o dia em que um anjo
passou por mim.
Meu anjo veio na forma de uma criança já com 11 anos,
calejada porém por 2 longos anos de tratamentos os mais diversos,
hospitais, exames, manipulações, injeções, e todos os desconfortos
trazidos pelos programas de quimioterapias e radioterapia.
Mas nunca vi meu anjo fraquejar. Já a vi chorar sim,
muitas vezes, mas não via fraqueza em seu choro. Via medo em seus
olhinhos algumas vezes, e isto é humano! Mas via confiança e
determinação. Ela entregava o bracinho à enfermeira, e com uma lágrima
nos olhos dizia: faça tia, é preciso para eu ficar boa.
Um dia, cheguei ao hospital de manhã cedinho e encontrei
meu anjo sozinho no quarto. Perguntei pela mãe. E comecei a ouvir uma
resposta que ainda hoje não consigo contar sem vivenciar profunda
emoção.
Meu anjo respondeu: - Tio, disse-me ela, às vezes minha
mãe sai do quarto para chorar escondido nos corredores. Quando eu
morrer, acho que ela vai ficar com muita saudade de mim. Mas eu não
tenho medo de morrer, tio. Eu não nasci para esta vida!
Pensando no que a morte representava para crianças, que
assistem seus heróis morrerem e ressuscitarem nos seriados e filmes,
indaguei:
- E o que morte representa para você, minha querida?
- Olha tio, quando agente é pequena, às vezes, vamos
dormir na cama do nosso pai e no outro dia acordamos no nosso quarto, em
nossa própria cama não é?
(Lembrei minhas filhas, na época crianças de 6 e 2 anos,
costumavam dormir no meu quarto e após dormirem eu procedia exatamente
assim.)
- É isso mesmo, e então?
- Vou explicar o que acontece, continuou ela: Quando nós
dormimos, nosso pai vem e nos leva nos braços para o nosso quarto, para
nossa cama, não é?
- É isso mesmo querida, você é muito esperta!
- Olha tio, eu não nasci para esta vida! Um dia eu vou
dormir e o meu Pai vem me buscar. Vou acordar na casa Dele, na minha
vida verdadeira!
Fiquei "entupigaitado". Boquiaberto, não sabia o que
dizer. Chocado com o pensamento deste anjinho, com a maturidade que o
sofrimento acelerou, com a visão e grande espiritualidade desta criança,
fiquei parado, sem ação.
- E minha mãe vai ficar com muitas saudades minha, emendou ela.
Emocionado, travado na garganta, contendo uma lágrima e um soluço, perguntei ao meu anjo:
- E o que saudade significa para você, minha querida?
- Não sabe não tio? Saudade é o amor que fica!
Hoje, aos 53 anos de idade, desafio qualquer um dar uma
definição melhor, mais direta e mais simples para a palavra saudade: é o
amor que fica!
Um anjo passou por mim...
Foi enviado para me dizer que existe muito mais entre o
céu e a terra, do que nos permitimos enxergar. Que geralmente,
absolutilizamos tudo que é relativo (carros novos, casas, roupas de
grife, jóias) enquanto relativizamos a única coisa absoluta que temos,
nossa transcendência.
Meu anjinho já se foi, há longos anos. Mas me deixou uma
grande lição, vindo de alguém que jamais pensei, por ser criança e
portadora de grave doença, e a quem nunca mais esqueci. Deixou uma lição
que ajudou a melhorar a minha vida, a tentar ser mais humano e
carinhoso com meus doentes, a repensar meus valores.
Hoje, quando a noite chega e o céu está limpo, vejo uma
linda estrela a quem chamo "meu anjo, que brilha e resplandece no céu.
Imagino ser ela, fulgurante em sua nova e eterna casa.
Obrigado anjinho, pela vida bonita que teve, pelas lições que ensinastes, pela ajuda que me destes.
Que bom que existe saudades! O amor que ficou é eterno.
Rogério Brandão
Médico oncologista clinico
OBRIGADA ÂNGELA MÍRIAM PELA CONTRIBUIÇÃO... VC É MESMO UMA PESSOA ESPECIAL.
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