Há pouco tempo num cruzeiro
a caminho do Marrocos, ouvi anunciarem que estávamos passando pelo Estreito de
Gibraltar, um canal que liga o Oceano Atlântico ao Mar Mediterrâneo. Gibraltar
é uma pequena península localizada ao sul da península Ibérica, território
britânico limitado ao norte por uma estreita fronteira terrestre com a Espanha.
Também é conhecida como The Rock; O Rochedo. Quando anunciaram, senti uma velha
e conhecida dor; a dor da saudade. Olhando para o lado de Gibraltar pude
reconhecer como num dejà vu, o rochedo tantas vezes descrito por meu pai. Quase
pude sentir as pedras que o então menino José, com apenas dez anos sentiu
ferindo seus pés numa noite escura de outubro de 1923. Era um casal e seus oito
filhos, entre eles meu pai, fugindo de uma guerra civil estúpida como são todas
as guerras. Camponeses humildes, que de valioso tinham os filhos e os sonhos.
Na Pedra dos Ingleses, como eles denominavam Gibraltar, depois de se
aventurarem de Oria na região de Almeria na Espanha com o transporte que
conseguiam, muitas vezes a pé, tomaram o vapor Córdoba no Porto de Gibraltar a
3 de Outubro de 1923, a caminho do Brasil e da realização de seus sonhos.
Aqui o menino José
cresceu, e aprendeu a trabalhar e amar a planta que ele nunca vira em sua árida
e montanhosa terra natal, com suas oliveiras e figueiras; a lavoura de café.
Aqui ele conheceu e se casou com sua Maria, também espanhola, e tiveram cinco
filhos. Viveram juntos por mais de sessenta anos, numa relação de afeto e
companheirismo que beirava a perfeição; só se separaram com o inevitável da
morte, mas por pouco tempo; Maria se juntou a ele 10 meses depois.
Dizem que espanhol é
bravo, teimoso, briguento; meu pai foi a pessoa mais doce, mais acolhedora e
tranqüila que conheci. Jamais alterou a voz ao falar comigo, nenhuma rispidez
ou palmada. Dizem meus irmãos mais velhos que com eles houve um pouco mais de
rigor; talvez tenha sido mais condescendente com os dois filhos menores e
temporões e principalmente com a única filha, que nasceu quando ele já tinha 40
anos. Amava seu trabalho de uma forma comovente; já casada e morando distante,
toda vez que ia visitá-los passeava com ele pelo cafezal. Seus olhos brilhavam
e ainda hoje quando penso nele quase sinto o perfume das flores brancas que
enfeitavam o verde dos pés de café durante a florada. Amava sua família
incondicionalmente; trabalhou muito com o único objetivo de nos proporcionar
conforto e um futuro sem as dificuldades que ele tão bem conhecia. Meu pai
nunca quis retornar à Espanha; esta era a sua terra...Mas em algum canto de seu
coração havia uma dor inevitável que eu pude presenciar. A primeira vez que
estive na Espanha, quando ele ainda era vivo, fui até sua cidade e de lá lhe
telefonei; e ele chorou...Minha filha Luciana dançava flamenco, e ele teve
oportunidade de vê-la dançando e também
chorou...
Meu pai partiu aos poucos... Começou a
partir quando a vitalidade começou abandoná-lo, estando com mais de oitenta e
cinco anos e aparentando muito menos. Quando a lida com seu amado cafezal se
tornou impossível, ele partiu mais um pouco...A doença e a depressão
melancólica pela perda de energia que acomete o idoso, o levou mais um
tanto. Com o agravamento de sua doença
e com mais de noventa anos foi hospitalizado. Todos os dias eu falava várias
vezes com meus irmãos que se recusavam a enxergar que ele estava partindo
definitivamente e me tranqüilizavam, até o dia em que meu sobrinho Sandro
atendeu o telefone e me informou que meu pai estava já inconsciente há algum
tempo. Viajamos imediatamente e chegamos no hospital tarde da noite; meus
irmãos quiseram pernoitar e me mandaram descansar. No dia seguinte muito cedo fui
para o hospital e disse a eles que poderiam ir pra casa e voltarem mais tarde. Fiquei sozinha com meu
pai, e depois de acariciar seu rosto e lhe falar por alguns minutos, me distrai
por um instante, e antes de olhá-lo novamente, o silêncio e a intuição me
disseram que ele havia partido para sempre; foi a última vez que o chamei....e
a única que ele não me respondeu.....foi um pai muito presente e amoroso.
Alguns disseram que ele me esperou para se despedir; não duvido....Partiu no
dia 13 de junho de 2004; dois dias antes do meu aniversário de 53 anos.
Há algum tempo por
insistência de minha filha Fernanda, requisitei minha cidadania espanhola. Sem
muito entusiasmo levei a documentação necessária ao consulado espanhol em São
Paulo, e quando disse ao funcionário que estava solicitando a cidadania ele me
disse; _” A senhora está recuperando sua cidadania; pelas leis espanholas a
cidadania é dada pelo sangue, a senhora a perdeu aos 18 anos quando não fez sua
documentação, mas recuperá-la é um direito seu”. Meus olhos se encheram de
lágrimas pois não esperava essa herança que pude passar aos meus filhos e
poderei passar aos meus netos; a cidadania Espanhola.
Meu pai foi um homem feliz e realizou seus
sonhos; um trabalho honesto que ele amava, uma boa esposa...e linda, bons
filhos, treze netos amorosos, conheceu oito bisnetos . Fui um de seus sonhos; isso
já me basta pra honrá-lo por toda minha vida.
Rosa Marin Emed
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